A vitória de Anora e a misoginia disfarçada de falso progressismo
Polêmica em torno do filme de Sean Baker expõe hipocrisia de uma geração que, sem perceber, alimenta cada vez mais ideais conservadores
Na manhã seguinte à cerimônia, muitas pessoas que acompanharam o Oscar despertaram com um misto de orgulho e frustração. Ainda Estou Aqui, apesar de ter garantido a vitória histórica em Melhor Filme Internacional, perdeu o prêmio na categoria principal para Anora, de Sean Baker. Além disso, Fernanda Torres foi derrotada na categoria de Melhor Atriz por Mikey Madison, a protagonista do filme vencedor. O que poderia ser uma discussão saudável sobre o mérito de cada obra logo se transformou em uma onda de ódio gratuito contra o ganhador da noite e sua atriz. Uma enxurrada de ataques disfarçada de falsa superioridade ética. As redes sociais foram inundadas por frases como "um filme sobre prostituição ganhou de um filme sobre ditadura militar”. Uma afirmação que escancara uma série de problemáticas, desde misoginia até o enfraquecimento do discurso progressista. A partir desse ponto, é possível discutir muito sobre a relação atual do público com o cinema e como essa geração tem se tornado cada vez mais conservadora.
O primeiro problema que surge nessa reação é a ideia de que o tema de um filme determina sua qualidade. Muitos brasileiros passaram a defender que Ainda Estou Aqui, por abordar a repressão da ditadura militar, merecia vencer simplesmente por ser "mais importante". Desdenhar que um filme sobre trabalho sexual ganhou de um filme sobre a ditadura carrega um julgamento moral implícito sobre qual história seria mais digna de reconhecimento. Filmes não devem ser medidos apenas pela importância de seu assunto, mas pela maneira como traduzem este para o cinema. O erro de considerar um filme "mais merecedor" apenas pelo peso histórico de sua trama ignora qualquer valor cinematográfico: narrativa, direção, atuação, montagem, fotografia, etc. Um filme pode falar sobre um tema sério e crucial e mesmo assim ser mal realizado; da mesma forma, uma comédia romântica “boba” pode ser executada de maneira brilhante. Não é a primeira vez que vemos essa ideia distorcida, como aconteceu com aqueles que defendiam uma vitória de 1917 sobre Parasita, apenas por considerarem o filme de Sam Mendes uma representação do “verdadeiro cinema”. É um ciclo vicioso, no qual consideram que apenas narrativas que carregam algum peso histórico são dignas de premiação. Mas quem decidiu que isso define a relevância de uma obra?
O segundo está no ataque misógino embutido na revolta contra Anora. O comentário "o filme da prostituta ganhou" não apenas carrega um tom de desvalorização do filme como arte, mas demoniza a própria existência de mulheres em profissões marginalizadas. O que deveria ser uma discussão sobre cinema virou um ataque preconceituoso à protagonista do longa e, por extensão, às trabalhadoras do sexo como um todo. A ironia? Muitas dessas críticas vêm de pessoas que se consideram progressistas. Usuários da internet que se dizem feministas ou de esquerda, que em outros momentos defendem pautas de inclusão e liberdade feminina, foram os primeiros a destilar ódio contra Mikey Madison e sua personagem, Ani. Algumas pessoas chegaram a chamar a atriz de "atriz do xvideos", o que ignora completamente um conceito básico: Madison não é Anora, assim como Fernanda Torres não é Eunice; ambas são atrizes desempenhando papéis, ou seja, apenas cumprindo seu trabalho. Isso mostra que parte da nova geração que se intitula progressista na verdade ainda mantém uma postura conservadora profundamente enraizada. Quando o assunto toca tabus como sexualidade feminina e trabalho sexual, a máscara cai e os discursos se tornam tão violentos quanto os da extrema-direita.
Já o terceiro problema dessa reação exagerada é que muitos dos críticos do filme sequer o assistiram. Na era digital, tornou-se comum julgar obras com base em manchetes, recortes de redes sociais e preconceitos pré-existentes, sem qualquer contato real com o material que atacam. Um comportamento reducionista que distorce e empobrece o debate sobre o filme. Anora está longe de ser essa ideia superficial de um mero filme sobre prostituição. O que Sean Baker entrega é um retrato contundente sobre desigualdade social, estruturas de poder e o colapso do sonho americano. Ani não é apenas uma stripper que se envolve com um jovem herdeiro russo – ela é o espelho de um sistema onde aqueles que estão à margem são os primeiros a serem descartados. Baker, conhecido por sua abordagem humanista e pela forma como retrata outsiders sem caricaturas ou paternalismo, constrói uma narrativa que transita entre a comédia e a tragédia. O filme dialoga com clássicos como Noites de Cabíria, mas sua força está na maneira como ele recontextualiza seus temas dentro de um cenário contemporâneo marcado pela precarização do trabalho, pelas ilusões de ascensão social e pela fragilidade das relações num mundo cada vez mais regido pelo capital.
A hostilidade contra Anora revela uma tendência conservadora crescente entre os jovens, inclusive os que se consideram progressistas. Há uma ânsia por classificar obras em termos morais e avaliar filmes não pelo que são como cinema, mas pelo que aparentam representar ideologicamente. Essa visão binária empobrece o debate público sobre a arte. Afinal, se a única métrica para julgar um filme for a "importância do tema" sem considerar sua execução, o cinema se reduz a um panfleto e abre espaço para censurar tudo o que não se encaixa em uma visão moralista. A reação ao prêmio de Anora diz mais sobre os espectadores do que sobre a obra em si. Se um filme sobre uma mulher que tenta sobreviver à hostilidade da elite gera mais revolta do que um sobre um homem que ajudou a construir a arma mais destrutiva da história, talvez seja hora de reavaliarmos nossas prioridades. E isso não é uma crítica a Oppenheimer – sua vitória no Oscar anterior foi merecida. A questão aqui vai além de comparar a qualidade dos filmes; trata-se de lembrar que o cinema não se define pelo tema que aborda, e sim pela maneira como o executa.
A opinião expressa neste artigo reflete exclusivamente o ponto de vista do autor, sendo uma análise pessoal sobre o tema abordado.
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