Crítica | Ainda Estou Aqui aborda memória através da ausência
Novo longa de Walter Salles reabre feridas para refletir as cicatrizes da ditadura militar no Brasil
Ainda Estou Aqui, o primeiro longa de ficção de Walter Salles em doze anos, é uma profunda reflexão sobre a dor da perda e a complexidade da memória. Baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, a trama retrata a tragédia de uma família brasileira marcada pelo desaparecimento de Rubens Paiva, ex-deputado sequestrado e morto durante a ditadura militar. A narrativa segue Eunice, sua esposa, que assume a responsabilidade de manter a família coesa enquanto enfrenta a ausência do marido e o sofrimento da perda.
Salles adota uma abordagem sóbria e sensível, focando nas sutilezas das relações familiares e nas cicatrizes deixadas pela violência política. A presença do pai desaparecido é sentida em cada aspecto da vida familiar, mas Ainda Estou Aqui não explora esse sofrimento de forma explícita. O filme opta por uma abordagem silenciosa, tratando a perda não como uma tragédia isolada, mas como uma ausência profunda que consome a memória e o cotidiano.
A fotografia de Adrian Teijido reforça essa transição. No início, a iluminação suave cria uma atmosfera acolhedora e tranquila, mas à medida que a perda se torna mais palpável, as sombras tomam conta, simbolizando a crescente dor que invade a vida da família. Esse contraste se conecta à representação da casa, antes vista como um refúgio seguro, agora impregnada por um vazio devastador. Com o passar do tempo, os espaços internos se tornam mais fechados e opressivos, refletindo a maneira como a dor se concentra em ambientes restritos e como suas marcas se tornam irreparáveis.
A personagem de Eunice, interpretada por Fernanda Torres, é o coração da obra. Torres entrega uma interpretação delicada, capaz de transmitir a complexidade da personagem por meio de pequenos gestos e olhares sutis. Sua atuação revela a luta de uma mulher que não pode se permitir demonstrar toda a sua dor, pois precisa proteger os filhos e preservar a unidade familiar. A direção se aproveita de silêncios e intervalos para aprofundar o luto, revelando um processo em que as emoções são disfarçadas, mas nunca totalmente superadas.
Com o passar do tempo, a memória de Rubens Paiva vai se tornando cada vez mais tênue. As imagens fotográficas e filmagens caseiras, que antes o mantinham presente, começam a se distanciar, como se sua figura fosse gradualmente apagada. Sua ausência se torna evidente nos pequenos detalhes do cotidiano, como uma cadeira vazia ou um canto da casa que antes era ocupado por ele. A busca de Eunice e seus filhos para preservar a lembrança dele se torna uma necessidade vital, mas também uma aceitação amarga de que, por mais vívida que seja essa memória, ela jamais será plena ou completa.
A procura da família por um atestado de óbito para o pai, anos após seu desaparecimento, simboliza a luta por reconhecimento e justiça, ao mesmo tempo em que evidencia a impossibilidade de superar completamente a dor de perder alguém pela violência do Estado. A memória dos desaparecidos persiste, assombrando os que ficaram. Ainda Estou Aqui reflete o legado deixado pela ditadura militar na memória coletiva do país: traumas que continuam a ecoar na sociedade e na história de inúmeros brasileiros.
Ainda Estou Aqui (Brasil, 2024)
Direção: Walter Salles
Roteiro: Murilo Hauser, Heitor Lorega
Elenco: Fernanda Torres, Fernanda Montenegro, Selton Mello, Otavio Linhares, Maeve Jinkings, Marjorie Estiano, Antonio Saboia, Camila Márdila, Valentina Herszage, Humberto Carrão, Helena Albergaria, Dan Stulbach, Luiza Kosovski, Olívia Torres, Caio Horowicz, Gabriela Carneiro da Cunha, Maria Manoella, Carla Ribas
Duração: 136 min.